O Douro vitivinícola antes da Região Demarcada
A produção de uva e vinho no Douro é uma tradição muito antiga. Os registos da presença da viticultura na região do Douro remontam à pré-história, onde estudos arqueológicos efetuados em sítios da idade do Bronze apresentam vestígios de videiras e sementes de uvas. As escavações arqueológicas do Castellum da Fonte do Milho (Peso da Régua) e a vestígios de uma villa romana em Tralhariz, (na foz do rio Tua), da época romana, demonstram que a tradição e a predisposição para a cultura da vinha nesta região é milenar, pois para além de vestígios orgânicos, foram encontradas e estudadas estruturas arquitetónicas responsáveis pela produção de vinho, como os lagares em pedra. O período romano terá sido responsável por uma expansão significativa na produção de vinho no Douro.
Uns séculos mais tarde, a cristianização da península ibérica, levada a cabo com a reconquista territorial aos árabes muçulmanos, que não tinham tradição do consumo de vinho, promoveu um novo período de desenvolvimento vitivinícola, efetuado de norte para sul, mas muito presente na região de Trás-os-Montes e no vale do Douro. Não só os cristãos medievais bebiam vinho e o usavam para se diferenciarem de outras comunidades não cristãs, como necessitavam dele para os seus rituais religiosos. Plantar uvas e consumir vinho faz parte da cultura cristã que se homogeneíza pela Europa durante a alta idade média. São várias as referências à importância do vinho na economia de localidades do vale do Douro, em documentos relativos a São João da Pesqueira ou Freixo de Espada à Cinta, ainda antes da nacionalidade portuguesa, em 1143. Também neste período dá-se a chegada dos monges da Ordem de Cister, provenientes de França, de modo a solidificar o novo país, estabelecendo vários mosteiros na região de Lamego, nomeadamente São Pedro das Águias, Santa Maria de Salzedas e São João de Tarouca. O vinho era um dos principais recursos ali produzidos. As inovações técnicas e a gestão das granjas e das quintas foram os grandes contributos trazidos pelos monges seguidores de São Bernardo. A relação próxima desta ordem com a casa real de Portugal influenciou o desenvolvimento cultural e económico do país durante este período de afirmação da nacionalidade portuguesa.
Durante este período, na alta idade média, estreita-se a ligação entre o Douro (nomeadamente a região de Lamego) e Vila Nova de Gaia e o Porto, dado que a proximidade destas cidades costeiras com as rotas marítimas europeias potencia muitos negócios e o vinho é um deles. É neste contexto que surge o termo de “vinhos de carregação” para aquelas quantidades que desciam o rio com o intuito de serem negociados, sobretudo, em Vila Nova de Gaia. Ocorre então uma competição tarifária entre as duas cidades, sendo que o senhor do Porto era o Bispo e o senhor de Vila Nova de Gaia o rei, procurando atrair os armazéns de vinho e os seus impostos para as suas terras. É neste contexto, com impostos mais atrativos, que se desenvolve Gaia como entreposto entre o Douro e os mercados internacionais, sendo o vinho uma das, senão a economia mais importante daquele concelho. Por outro lado, a cidade do Porto era, para além de negociante, uma grande consumidora do vinho vindo de “riba Douro”.
É durante o século XVII que o vinho generoso, já aguardentado para aguentar as viagens, adquire uma importância maior como produto económico e de exportação para a cidade do Porto e para a região do Douro. Embora a data de 1678 seja historicamente determinante devido ao primeiro registo alfandegário que define o vinho como “vinho do Porto”, registos anteriores já confirmam o aumento das vendas e exportações do vinho para os mercados internacionais.
Enquadramento que leva à criação da Região Demarcada do Douro
O final do século XVII revela-se determinante para o crescimento das exportações de vinho provenientes do Douro (e de outras regiões de Portugal), dadas as rivalidades existentes entre as coroas inglesa e francesa, que culminaram com a guerra dos nove anos (de 1688 a 1697) e com o bloqueio da compra de produtos franceses por parte dos britânicos. São vários os fatores que levam a esta medida, mas o facto é que, juntamente com a assinatura do tratado de Metween, em 1703, os vinhos portugueses são largamente beneficiados junto do mercado britânico, por ser um produto disponível e beneficiar de tarifas mais baixas.
Este tratado previa vantagens tarifárias na entrada de vinhos portugueses em Inglaterra e, em compensação, os tecidos ingleses beneficiavam de uma isenção de direitos à entrada em Portugal. Entre 1689 e 1714 as relações comerciais entre os Franceses e os Britânicos estiveram praticamente paradas, pelo que os mercadores ingleses interessados em fornecimentos alternativos de vinhos ao mercado encontraram no Douro um fornecimento estável, credível e nas quantidades necessárias. Se o acordo beneficiou a vitivinicultura portuguesa, a longo prazo limitou o desenvolvimento industrial português e restringiu o seu desenvolvimento económico, provocando, com o tempo, uma dependência da balança comercial nacional a favor dos ingleses.
O sucesso comercial da venda de vinho faz com que cheguem a Vila Nova de Gaia e ao Porto vinhos provenientes de várias origens, do norte ao sul de Portugal, sem preocupação pela sua origem. Desde que saísse pela barra do Douro, era considerado “vinho do Porto”. Vinhos de várias proveniências e de vários perfis começaram a ser corrigidos de modo que parecessem vinho do Porto, sendo, por exemplo, frequentemente adicionada baga de sabugueiro para incrementar a cor do vinho quando ele não a tinha e esconder sabores agressivos, assim como misturas com vinho espanhol, mais carregado na cor, ou ainda açúcar para disfarçar a má aguardente. O crescente sucesso mercantil acabou por pôr em causa a qualidade do produto que estava a ser vendido para exportação, levando posteriormente ao seu declínio. A tensão entre vendedores e compradores, sobretudo ingleses, intensifica-se e a crise instala-se por volta de 1750, com a qualidade do vinho a ser colocada em causa. Em 1754 os ingleses não compram vinho aos lavradores e acresce que este e o ano anterior acabam por revelar-se anos maus e de baixa produção.
A criação da primeira Denominação de Origem do mundo
Considera-se que a Região Demarcada do Douro é a primeira denominação de origem do mundo, pois é a primeira vez na história que um produto agrícola de reconhecida notoriedade produzido numa área especifica é dotado de regras e regulamentos e sobre as quais é criada uma entidade reguladora. No caso do vinho do Porto, a Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro é criada a 10 de setembro de 1756 com o intuito de fazer valer uma série de medidas cujo objetivo foi fechar a região à entrada de vinhos externos e garantir a sua qualidade, quantidade e proveniência. A criação de um cadastro de parcelas de vinha, o estabelecimento de stocks máximos de venda e preços consoante a qualidade verificada (por funcionários da companhia), assim como a proibição da adição de produtos que pudessem alterar o perfil dos vinhos produzidos na região são algumas de muitas das responsabilidades da Companhia. O alvará da sua criação (e da Região Demarcada) é um conjunto de regras pioneiro que pretende manter a qualidade e repetibilidade do vinho e que acaba por reequilibrar a saúde financeira dos fidalgos e burgueses durienses, assim como dos mercadores estabelecidos em Gaia e no Porto. Por outro lado, o controlo da região passa para as mãos do estado, afinal, o sinal dos tempos do iluminismo totalitário que Pombal tão bem conhecia da sua experiência como embaixador em Londres e em Viena.
Só muito mais tarde, no primeiro quartel do Século XX é que a França acaba por ser o motor da definição do conceito de appelation d’origine, em muito semelhante aos princípios que nortearam a criação da companhia, definindo como pilares de uma Denominação de Origem, o produto, a região e a entidade de controlo.
Nos anos seguintes do século XVIII, sobretudo no reinado seguinte, da rainha D. Maria, foram feitas alterações às regulações sobre a região e sobre a companhia. No entanto, a sua essência manteve-se por muitos anos.
A criação da companhia e a delimitação da região foram um fator de desenvolvimento comercial nas décadas seguintes, até à primeira década do século XIX, aquando da invasão de Portugal pelas tropas napoleónicas.
O vinho do Porto através do século XIX
Marcado por um período global de estabilização de vendas durante todo o século, com algumas variações, a região do Douro e o vinho do Porto ficam marcados por alterações na produção, estilos e geografia da região. O vinho do Porto confronta-se com alguns momentos-chave que se podem definir como determinantes para a conceção do vinho tal como o conhecemos atualmente.
Durante a primeira metade do século XIX, o peso das exportações de vinho do Porto representou sempre entre 40% e 50% do total de exportações do país, o que demonstra a importância deste produto para a economia do país. Mesmo tendo havido um período de disrupção por altura das invasões francesas (1807 a 1810), as vendas recuperaram com celeridade. Mais determinante é o processo de liberalização da economia, que acaba por se desenvolver por todo o século XIX, começando simbolicamente com a revolução liberal (que se dá no Porto em 1820) e cujo apogeu é a guerra civil que grassa em Portugal entre xxxx e xxxx e que tem a cidade do Porto como epicentro.
Todo o processo liberal tem profundas consequências na organização legislativa do douro e do vinho do Porto, que leva progressivamente a alterações nos poderes da Companhia Geral (entre 1822 e 1852), onde altera poderes regulatórios mas perde os exclusivos comerciais, até à sua privatização total (1852). Segue-se a criação de uma comissão reguladora de cariz interprofissional (até 1865) e, por último, a desregulação total da região, sem regras ou entidades controladoras (a partir de 1865). Foi um período experimentalista, profundamente vincado em ideais liberais, mas que, em última análise, levou ao aparecimento de novos problemas e desafios enfrentados pela região, com repercussões até ao início do século XX.
Ainda antes, no primeiro quartel, ter-se-á transformado o gosto do vinho do Porto junto dos seus clientes, sobretudo os internacionais. Muito provavelmente fruto de uma transformação gradual, o vinho do Porto passa de um vinho seco, aguardentado no final da fermentação para aguentar as viagens de barco para os mercados externos, para um vinho doce cuja adição do espírito era feita durante a fermentação, mantendo os açúcares naturais das uvas. Datas determinantes de anos muito quentes em que o açúcar da uva não terá sido todo convertido em álcool, assim como apetência do mercado para vinhos mais doces terão sido
Mais grave e responsável por uma profunda transformação na paisagem do Douro foi a chegada da filoxera, muito provavelmente em 1863, segundo relatos da época. Se bem que outras doenças, como o oídio e o míldio, assolavam já os vinhedos da região, nada foi tão devastador como o inseto microscópico responsável por comer as raízes das videiras e, em último caso, matá-las. Durante o período em que parecia não haver solução para tanta devastação, cerca de duas décadas, o Douro foi abandonado e as suas populações acabaram mesmo por emigrar procurando trabalho nas grandes cidades ou no Brasil, onde parecia haver mais oportunidades. A solução, que chega com a enxertia de raiz americana, leva a plantação de novas vinhas em terrenos ainda não explorados, empurrando o Douro para leste e ocupando aquilo que se chama hoje o Douro Superior.
A primeira metade do Século XX, entre João Franco e Salazar
O início do Século XX traz de novo a regulação e a demarcação da região por força de uma crise continuada e de uma constante tensão entre a produção e o comércio.
Em 1907 e 1908, o governo ditatorial de João Franco faz uma profunda reforma legal em todo o setor vitivinícola de Portugal. Esta nova legislação afeta não só o Douro e o vinho do Porto, como outros regiões de vinhos fortificados como Madeira, Carcavelos e Moscatel de Setúbal, assim como os Vinhos Verdes, Dão e Colares.
O Douro passa novamente a comercializar apenas vinhos produzidos na sua região. As modificações mais importantes são o alargamento da região, (relativamente à geografia que vigorava em 1865, cresce em dimensão e para o Douro Superior, a leste), a determinação da origem da aguardente (de fora da região), assim como o estabelecimento da barra do Porto (e de Leixões) para a exportação dos vinhos.
As circunstâncias políticas da primeira metade do século XX levam a novas alterações regulamentares da região, desta feira com a implementação de uma visão corporativista da economia e da sociedade posta em prática pela ditadura do Estado Novo, coincidindo no tempo nova crise na região fruto de uma queda de exportações face à conjuntura económica internacional do início dos anos 30. A “Casa do Douro” é constituída em 1932 com o objetivo de representar os interesses dos viticultores durienses. No ano seguinte, em 1933 é criado o Grémio de Exportadores do Vinho do Porto, para representar os comerciantes, assim como o Instituto do Vinho do Porto, cujo objetivo era tutelar o setor a nível governamental e controlar a qualidade e quantidade do vinho do Porto a produzir e exportar.
Este regime manter-se-á estável até à revolução democrática de 1974.
A segunda metade do Século XX – Democracia e União Europeia
Os anos 60 foram um período de afirmação do vinho do Porto no mundo, fruto das novas formas de consumo e de novos consumidores após a segunda guerra mundial. Por um lado, dá-se um alargamento e diversificação de mercados. Por outro, chegam ao mercado vários estilos de vinho do Porto que se vão consolidando e adaptando aos gostos dos consumidores.
Em 1963 o maior mercado consumidor de vinho do Porto foi a França. Pela primeira vez desde os primeiros registos de exportação na alfândega do Porto, trezentos anos antes, a Inglaterra (ou o Reino Unido) não é o principal mercado para as vendas de vinho do Porto. A França assumiu um papel preponderante no final do século XX até ao início do século XXI quando foi ultrapassada por Portugal, pela primeira vez na história, apenas em valor, em 2019.
A democracia traz novas dinâmicas à produção e ao comercio do vinho do Porto. Por um lado, dá-se um período de profunda remodelação das vinhas, já antigas e pouco produtivas. Para saber mais sobre este processo, chamado PDRITM, consultar a história dos vinhos do Douro, aqui. Esta replantação é um dos motores para a melhoria da qualidade dos vinhos do Porto no final do século e no início do século XXI.
Por outro, a entrada da União Europeia em 1986 é um marco naquilo que define a região do douro, o vinho do Porto e os vinhos do Douro aquilo que são hoje. O exclusivo da Barra do Douro para a exportação é banido, permitindo aos pequenos produtores e quintas criar as suas marcas e exportar os seus vinhos a partir de qualquer parte do Douro. No entanto, as regras de controlo quantitativo de produção (a lei do terço e os quantitativos de vindima e existências) mantêm-se em vigor até hoje, assim como o controlo qualitativo efetuado pelos laboratórios e câmara de provadores do IVDP, criado em 2003, pela integração de responsabilidades na gestão dos vinhos do Douro.
XXI, o século de afirmação
A região do Douro, não obstante os seus problemas e desafios, encontra no século XXI uma visibilidade global nunca conhecida. Em 2000 o vinho do Porto atinge os maiores valores e volumes de exportação de sempre e em 2001 a região é reconhecida pela UNESCO como património mundial, sendo reconhecida como uma “paisagem evolutiva e viva”.